
O PODER DA
BIOGRAFIA
O PODER TRANSFORMADOR DA BIOGRAFIA
A UTILIZAÇÃO DE BIOGRAFIAS PARA A MITIGAÇÃO DA DOR
A elaboração de uma biografia representa - ou deveria representar - uma prática que transcende a mera coleta de fatos e datas. Reproduzir no papel situações desafiadoras enfrentadas pelo(a) protagonista sem promover uma reflexão por múltiplas perspectivas, é um deslize imperdoável.
Pobre ou rico, branco ou negro, é praticamente inevitável escapar ileso do ar da graça da Sra. Adversidade. Em algum momento de nossas vidas, todos enfrentaremos situações desafiadoras. E a arte de se lidar com elas reside em não esmorecer, mas sim, em transformar obstáculos em oportunidades. Como diz o velho ditado, fazer do limão uma limonada. Entretanto, ainda que o indivíduo consiga superar seus desafios, as marcas ficam. E temendo o sofrimento que as lembranças daquela situação ainda podem lhe causar, ele as deposita em um lugar profundo, no qual hesita revisitar.
Ao vivenciar o processo de escrita biográfica, por mais que se queira e tente, é impossível manter dores e traumas relagados ao esquecimento. No entanto, se este processo fo bem conduzido, surge uma janela de oportunidade para que estes possam ser ressignificados. É a biografia a serviço da mitigação da dor. Ao apresentar para o biografado elementos que façam com que observe suas difíceis questões por um outro ângulo, abre-se a possibilidade de amainar feridas, perdoar e perdoar-se.
Nesse processo, obtém-se um aprendizado de valor inestimável, que se torna ainda mais valioso quando compartilhado com outras pessoas, sejam elas próximas ou não. Os receptores que entrarem em contato com aquela biografia sob a perspectiva da superação, e não pela do sofrimento, abrem-se à capacidade de aplicar em si mesmos esses ensinamentos, evitando situações semelhantes ou enfrentando-as corajosamente, munido das ferramentas necessárias.
Em um aspecto mais amplo, a biografia cuja narrativa é tratada com intenção e profundidade beneficia não somente o biografado, mas também seus leitores e a sociedade como um todo:
-
No âmbito individual, o leitor tem o benefício de ser instigado a refletir sobre suas próprias dores e traumas e, amparado pelas novas perspectivas que a narrativa oferece, busca formas criativas para lidar com suas adversidades, mudando sua forma de agir e pensar;
-
No contexto coletivo, narrativas de vida que destacam resiliência e coragem despertam em todos os leitores, mesmo naqueles que se sentem distantes dessa realidade ou se veem em posições socialmente superiores em relação aos protagonistas, expressões de empatia e respeito por esses personagens. Surge, assim, a oportunidade de romper-se crenças preconceituosas por meio da admiração e não por imposição.
A UTILIZAÇÃO DE BIOGRAFIAS PARA A DESCONSTRUÇÃO DE PRECONCEITOS
Em nossos projetos, a decisão de utilizarmos biografias de indivíduos desconhecidos do público é proposital e obrigatória. É desta maneira que proporcionamos a possibilidade de estabelecer uma possível identificação e vínculo emocional entre leitor e protagonista. Quando o contexto e o ambiente - ao menos o país - nos quais a narrativa se desenvolve são familiares aos leitores, a identificação ocorre de maneira mais fluida. Por conseguinte, facilita significamente o processo de edificação da empatia.
Uma biografia bem desenvolvida, que contextualiza a vida do(a) protagonista dentro do cenário histórico, econômico e social em que ele(a) viveu ou vive, justifica, pelo menos em parte, as razões pelas quais o(a) personagem agiu da maneira que agiu, ainda que conflitando com os preceitos da ética, valores e moral. Também é importante lembrar que os costumes e a cultura popular passam por transformações ao longo do tempo. Ao adotar uma narrativa que evidencie tais mudanças, cria-se a possibilidade para que o leitor interprete os eventos a partir da perspectiva da época retratada, evitando assim, julgamentos inapropriados e o reforço de preconceitos, frequentemente originados pela aplicação de padrões contemporâneos a contextos passados.
Um grande exemplo é a BIOGRAFIA DE ELZA SOARES, escrita por Zeca Camargo. Antes de alcançar a fama como cantora, Elza sobrevivia fazendo faxinas em casas de família e instituições. Vivendo em condições de extrema precariedade e desesperada com a responsabilidade de alimentar seus filhos, Elza relata que não hesitava em levar escondidos em sua bolsa mantimentos e até mesmo dinheiro dos lugares onde trabalhava. Se analisássemos essa narrativa de maneira superficial, sem considerar o contexto, poderíamos cair na armadilha do pensamento estereotipado: "toda empregada doméstica rouba; negros têm má índole; todo negro rouba". Há que se ter sempre em mente, porém, que por trás de uma raça, gênero, condição física, opção sexual, condição financeira, encontra-se um ser humano com sua jornada de vida, suas origens, suas dores e seus desafios. É necessário que se transcenda a própria individualidade e se coloque de maneira verdadeira no lugar do protagonista, que, na época, era vítima de seu próprio contexto. Quanto mais uma narrativa biográfica oferecer elementos que recriem o cenário e o contexto da época, mais simples e fácil se torna para o leitor se identificar com o personagem. É desta forma que a iniciativa RESILIAR deseja introduzir na sociedade uma visão humanizada do indivíduo de natureza minoritária.
A UTILIZAÇÃO DE BIOGRAFIAS COMO FORMA DE EMPODERAMENTO
A conexão entre leitor e protagonista torna-se ainda mais significativa quando a identidade social é igual ou similar entre ambos. No contexto do nosso projeto atual, NOVOS OLHARES PARA ANTIGAS QUESTÕES NEGRAS, este público é composto por mulheres negras de baixa renda.
As biografias que serão desenvolvidas ao longo do projeto apresentarão histórias de quatro mulheres que compartilham grandes semelhanças com uma considerável parcela da população feminina negra. A mulher negra encara diariamente situações de enfrentamento ou submissão a preconceitos; luta arduamente por sua sobrevivência e segurança; e mesmo quando a força lhe falta, é obrigada a seguir em frente porque não dispõe de alternativas ou recursos internos.
Em decorrência da frequente baixa escolaridade e limitada condição financeira, muitas dessas mulheres não conseguem enxergar-se como merecedoras ou capazes de alcançar patamares superiores aos que atualmente ocupam. É essencial encorajá-las e fortalecê-las para que possam reconhecer o próprio valor e reavaliar seus papéis na sociedade, seja como mulher, profissional, mãe ou cidadã, posicionando-se de forma assertiva na busca por seus direitos. É preciso empoderá-las.
Desta forma, é fundamental que haja um contato deste público com exemplos reais de mulheres negras resilientes e bem-sucedidas. Independentemente de sua faixa etária, é premente a necessidade de modelos palpáveis e concretos de mulheres que partiram de um cenário similar ao seu e que foram capazes de ultrapassar os muros do preconceito e das adversidades. Surge, assim, um vislumbre de empoderamento para aquelas mulheres que hoje apenas sobrevivem, sem grandes expectativas futuras.
Ao longo dos últimos anos, o público negro feminino vem sendo estimulado a exercitar seu empoderamento, principalmente o de faixa etária mais jovem. Políticas públicas, ações afirmativas, mídias, programas e iniciativas promovidas por empresas privadas e organizações sociais, estimulam e favorecem a educação, o afroempreendedorismo (que no caso feminino, ainda se dá por necessidade e não por oportunidade) e outras importantes ações para uma tomada de consciência. Cada vez mais, jovens e mulheres negras precisam se (re)descobrir como parte atuante e fundamental da sociedade e ocupar de forma maciça mais lugares de destaque.
Em sintonia com este movimento, nosso projeto visa desenvolver biografias de mulheres negras resilientes que, ao longo de suas jornadas, superaram obstáculos e alcançaram patamares acima, ou muito acima, de suas origens. Este enfoque permite que a leitora negra de baixa renda, especialmente a mais jovem, se indentifique e se inspire nas lutas e conquistas da protagonista, para que ao final, se sinta capacitada a trilhar sua jornada de forma semelhante.
Ressalta-se a importância do trabalho junto ao público jovem, para que um leque de novos caminhos e papéis, até então não imaginados, possa se descortinar. Desta forma, evitamos que se prendam com tão pouca idade às rotinas cujas suas predecessoras foram submetidas involuntariamente. Se almejamos um futuro no qual a mulher negra não se veja obrigada a abdicar de seus estudos em prol de funções domésticas ou da necessidade de buscar um sub-emprego para seu sustento, é necessário que apresentemos cada vez mais exemplos de mulheres resilientes, que se desdobraram para traçar um caminho profissional valoroso e próspero.
Pretendemos atingir estes objetivos através de nosso conteúdos publicados (livros biográficos e mídias sociais) e das palestras que serão oferecidas em escolas públicas de Ensino Médio após o lançamento dos livros. Levaremos a este público reflexões sobre os múltiplos papéis que uma mulher negra ocupa atualmente na sociedade brasileira e quais os caminhos a seguir para que esta realidade se transforme de maneira positiva.
A BIOGRAFIA COMO FORMA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL
As biografias, além de atuarem no caráter sócio-educativo, asseguram a perenidade cultural da comunidade afrodescendente, a partir dos resgates de memórias cotidianas, em que elementos como práticas religiosas, gastronômicas e culturais são suscitadas e eternizadas.
Ao entrelaçarmos relatos de costumes e crenças a uma narrativa envolvente, transportamos o leitor para o contexto espaço-temporal dos eventos biográficos, gerando uma cumplicidade e empatia em relação aos personagens. O que anteriormente poderia parecer estranho ou inaceitável começa a adquirir forma se significado, desafiando paradigmas, crenças e preconceitos. Já para aqueles que se identificam com a cultura negra, esse efeito é fortalecedor, resultando na perpetuação perpetuação e o reforço de seus costumes.
A IMPORTÂNCIA DA BIOGRAFIA SOBRE A MULHER NEGRA
A divulgação de biografias de mulheres negras em contextos literários e históricos vem se mostrando crescente ao longo dos anos. Pouco se falava em Antonieta de Barros, Tereza de Benguela, Dandara dos Palmares ou Sueli Carneiro. Ainda assim, nomes como estes ainda são desconhecidos do grande público, restringindo-se mais fortemente ao domínio daqueles que lutam pelas causas raciais. Em solo norte-americano, autores, historiadores e acadêmicos estão dedicando cada vez mais esforços para trazer à luz histórias de mulheres negras que desempenharam papéis significativos em várias áreas, como ativismo, ciência, literatura, política e artes. Fruto disso, são inúmeras biografias sobre o tema disponíveis no mercado.
Qualquer exemplo inspirador é útil para fortalecer a mulher negra, porém, devemos levar em conta que biografias estrangeiras apresentam realidades distintas daquela que a mulher negra brasileira vivencia. Para que uma biografia possa tocar o fundo da alma da leitora e despertar sua consciência, é necessário que ela se identifique plenamente com a protagonista e seu entorno. Essa identificação se constituirá muito mais fluidamente se a história transcorrer em um contexto similar ao que ela vive, em contraposição a uma comunidade negra norte-americana ou africana.
Uma das escritoras negras brasileiras mais proeminentes da atualidade, Conceição Evaristo, compartilhou em uma entrevista ao PORTAL LITERAFRO, da UFMG que décadas atrás, sua mãe leu e se identificou tanto com o livro QUARTO DE DESPEJO, escrito em 1960 pela catadora de lixo CAROLINA MARIA DE JESUS, que anos mais tarde resolveu, assim como a autora, escrever um diário. Este ato, possivelmente foi um entre outros similares, que pode ter exercido influência significativa sobre Conceição Evaristo, motivando-a a almejar um caminho distinto daquele que suas origens aparentavam ter delineado para ela.
Carolina Maria de Jesus representou um marco para a literatura da época, pois além de ser uma das primeiras autoras negras a ter um livro publicado no Brasil, apresentou às camadas sociais mais privilegiadas do país uma realidade pouco conhecida: a vida sacrificante em uma favela e a cor da fome.
Desde então, diversas autoras negras têm se destacado no cenário literário brasileiro, incluindo personalidades como a própria Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro, Ryane Leão, Ana Paula Maria, Jarid Arraes, Lélia González, Cidinha da Silva, Elisa Lucinda, Kiusam de Oliveira, Sueli Carneiro, Ana Maria Gonçalves, entre outras.